Universidades
públicas brasileiras:
desmonte em andamento
Por Maria Sílvia Betti
- a naturalização e a internalização generalizada do pensamento produtivista
- a naturalização e a internalização generalizada do pensamento produtivista
Em pouco tempo, os critérios assim instituídos
passaram a nortear as linhas de pesquisa acadêmica em todos os campos do saber
e em todas as áreas da universidade, cobrindo de forma irrestrita as áreas de
ciências exatas, biológicas e humanas.
21/07/2014
Publish or perish – quem se der ao trabalho de lançar a
expressão “publish or perish” no campo de buscas do Google chegará, entre
outras referências, a um verbete da Wikipedia, precedido pela seguinte
advertência:
The examples and
perspective in this article deal primarily with the United States and do not
represent a worldwide view of the subject (acessado em http://en.wikipedia.org/wiki/Publish_or_perish).
Mesmo em 2010, data da elaboração
do verbete, a lógica inerente ao “publish or perish” norte-americano já estava,
há pelo menos duas décadas, constituída no principal parâmetro de avaliação do
mérito da pesquisa no Brasil. Seus pressupostos são ainda e foram, desde
o início, os seguintes: o pesquisador deve escrever artigos, apresentar
trabalhos em congressos e organizar eventos relacionados à pesquisa realizada
ou em andamento. Esses artigos, “papers” e eventos constituiriam evidências do
trabalho do pesquisador e assim forneceriam elementos para a avaliação do
mérito da pesquisa.
No âmbito das agências de
fomento, e principalmente no âmbito da CAPES, esses artigos, “papers”, eventos,
etc. passaram a ser designados como “produtos” e “resultados”, conceitos não
casualmente comuns aos vigentes no âmbito do trabalho industrial e em série.
Quanto mais numerosos fossem, mais significativa seria considerada
a “produção” do docente ou pesquisador, e também dos Programas de Pós
Graduação, e maior a possibilidade de obtenção de recursos de pesquisa
por parte das agências de fomento.
Com a capilarização e a
internalização dessa lógica em todos os setores do trabalho docente na
universidade, um número crescente de revistas, periódicos e eventos foi se
multiplicando, o que acabou fazendo que outros vetores de avaliação fossem
incorporados aos quantitativos: os artigos passaram a ser mais bem avaliados se
publicados em revistas ou periódicos dotados de política editorial seletiva e
de âmbito internacional, e os eventos passaram a sê-lo na medida em que
comprovassem a existência de interlocução acadêmica com universidades estrangeiras.
Um sistema de indexação foi
desenvolvido para a inserção e submissão desses dados às instâncias
avaliadoras, e plataformas digitais foram desenvolvidas para que os dados
correspondentes fossem lançados e pudessem ser indexados. Vários níveis de
indexação passaram a atestar, com base nelas, a “qualidade” dos “produtos” e
“resultados”. As próprias chamadas para publicação em revistas acadêmicas “bem
indexadas” passaram a anunciar com destaque a indexação atingida.
Os procedimentos técnicos para a
inserção desses dados por programa de pós passaram a demandar o fornecimento de
informações técnico-quantitativas cada vez mais detalhadas. Deixar de
atendê-las ou fazê-lo de forma tida como incompleta passou a representar, em
termos concretos, incorrer no risco de ter uma “produção” considerada não
meritória ou insuficiente, o que, por sua vez, passou a implicar o risco de
rebaixamento do nível de avaliação desse programa e, consequentemente, de sua
captação de recursos para bolsas e eventos.
Rapidamente disseminou-se a ideia
de que o atendimento estrito a todas essas normas era uma questão de “interesse
social”, já que tanto o Programa como seus pós-graduandos dependiam desses
recursos para a realização plena de seus estudos e pesquisas.
Em pouco tempo, os critérios
assim instituídos passaram a nortear as linhas de pesquisa acadêmica em todos
os campos do saber e em todas as áreas da universidade, cobrindo de forma
irrestrita as áreas de ciências exatas, biológicas e humanas.
Ao cabo de alguns anos esses critérios
passaram a ser incorporados e levados em consideração também no âmbito
das provas de títulos em concursos para a seleção de docentes em universidades
públicas.
Implicações do publish or perish –
- a naturalização e a internalização generalizada do pensamento produtivista, apoiado na avaliação quantitativa, e dos critérios técnicos de indexação, apoiados na ideia de que a “qualidade” ou excelência tem relação direta com o alcance da circulação editorial, com o status comercial das editoras envolvidas e com o grau de internacionalização atingido e comprovado pelos Programas de Pós e seus pesquisadores;
- a generalização da ideia de que, quanto mais auxílios tiverem sido captados por um docente ou pesquisador, tanto maior será a qualidade e a relevância de seus estudos. Não casualmente essa lógica é análoga à vigente no âmbito do crédito bancário: quem tem mais, será mais bem qualificado para pleitear. Quem tem menos, será visto como menos qualificado e terá menos chances.
- a inversão das motivações de interesse de pesquisa por parte de orientadores e de pós-graduandos: muitos procuram escolher assuntos de pesquisa condizentes com resultados que venham a ser considerados expressivos pela lógica das agências avaliadoras e formatam seus projetos com base naquilo que, presumivelmente, terá maiores chances de receber recursos;
- a implantação dos conceitos de “visibilidade” e de “internacionalização” como parâmetros para a comprovação da relevância da pesquisa;
- a implantação de uma lógica elitista e excludente no âmbito dos Programas de Pós e dos concursos de seleção de docentes em universidades públicas. Os pós-graduandos deverão dispor de condições materiais de sobreviver com o valor mensal das bolsas de estudos, ou terão que se dividir entre o trabalho assalariado em tempo integral e os estudos, já que as agências exigem a comprovação da inexistência de qualquer vínculo trabalhista paralelo à pesquisa durante o período de vigência do auxílio. Os docentes que não construírem, por meio de seu trajeto de docência e pesquisa, um histórico expressivo sob o ponto de vista da quantificação de seus “produtos” e da “qualidade” deles, tecnicamente aferida por meio das plataformas de indexação, serão considerados menos merecedores;
- o sistema de vida, trabalho e pensamento que assim se dissemina é adverso à pesquisa continuada, analítica e reflexiva.
- A Universidade pública, impregnada em todos os seus setores dos preceitos inerentes a esta lógica produtivista, passa a comportar-se de forma idêntica à das instituições do setor privado, demonstrando assim ter aberto mão daquilo que, supostamente, a diferenciava, ou seja, a possibilidade da realização da pesquisa continuada, orientada pelo interesse social de seu objeto.
- No momento em que estas linhas estão sendo escritas, a situação das três universidades públicas do Estado de São Paulo indica que atingimos o último estágio da erosão intelectual e humana desencadeada por esse sistema: o grau máximo do desmonte, já em grande parte consumado e irreversível, do caráter público e socialmente relevante da pesquisa, enunciado no argumento do Reitor Zago, da USP, em entrevista ao jornal O Estado de São Paulo, ao referir-se ao regime de dedicação integral à docência e à pesquisa como sendo uma “jabuticaba brasileira”. Em alguns anos - não muitos, pelo ritmo dos acontecimentos - as universidades públicas terão sido privatizadas e a pesquisa propriamente dita já não terá como sobreviver em sua instância crítica e pensante, em solo tão hostil.
Maria Sílvia Betti é professora do Departamento de
Letras Modernas da FFLCH/USP.
Terça-feira,
29 de julho de 2014
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