A escola resolve o
nosso apartheid?
Por: Saul Leblon
A escola
pode muito. Mas é questionável que vá salvar a pátria, dizia Antonio Candido ao
PT, em 2002. Vale reler em 2014.
Quem vai
salvar a pátria?
Um traço
constitutivo da agenda conservadora consiste em festejar as derrotas da sociedade brasileira
abstraindo a dimensão estrutural do
problema.
Ou seja,
omitindo sua responsabilidade.
Espremido o
foco, o resto fica fácil.
Cria-se uma
circularidade; ela confina o debate do futuro no campo da moral.
E a moral,
como se sabe, é o apanágio da classe
dominante.
Entre nós
esse reducionismo determina que o faminto é culpado pela fome.
O Estado,
carcomido pelo cupim privatista, é o responsável pela indigência pública.
O lado
‘gobineau’ das elites –em que a genética
define a história-- tem na educação um
compêndio ilustrativo de sua versatilidade e dos seus limites.
Manchetes
desta semana esponjaram-se no desempenho sofrível dos estudantes brasileiros no
Pisa, edição 2012.
O Programa de Avaliação Internacional de
Estudantes da OCDE sabatina alunos de 15
e 16 anos em matemática, leitura e ciências.
A mensagem
subliminar do jornalismo conservador era:
esse, o país dirigido pelo populismo!
Das 65
nações incluídas no teste, o Brasil foi
a que apresentou a melhor progressão no aprendizado de matemática nos últimos
nove anos.
O fato de
persistir no 58º lugar depois disso (em
ciências figura no 59º; em leitura, no 55º, num total de 65) é sugestivo do ponto de partida pantanoso sobre o qual a elite ‘esclarecida’ fixou a
escola pública brasileira.
O mais irônico é que a narrativa
conservadora define a educação como o único canal legítimo de
mobilidade das massas no país.
Por trás
desse simulacro de meritocracia esconde-se o círculo de ferro de uma das piores
estruturas de distribuição de renda do planeta, que se avoca o direito à eternidade.
Endinheirados que se orgulham de patrocinar ONGs pela redenção educativa, garantem: será
assim, através da escola, não da reforma
agrária, a tributária ou a urbana, tampouco através do salário mínimo
‘inflacionário’, que a miséria material e espiritual perderá seu reinado neste
lugar.
A escola
pode muito.
Acertou em
cheio o governo ao impor uma regulação soberana sobre a riqueza do pré-sal,
que permitirá transferir múltiplos de
bilhões de reais à politica educacional nos próximos anos.
Mas é
questionável que a escola possa tudo o que lhe atribui a emancipação a frio apregoada pela agenda
conservadora.
Ser uma ilha
de excelência, capaz de abrigar e exorcizar o oceano de iniquidades ao seu
redor, parece mais um enredo de aventura
nas estrelas do que o horizonte histórico de uma nação.
Os analistas
do Pisa parecem corroborar essa
avaliação.
Eles afirmam
que a metade do ganho brasileiro em matemática, por exemplo, foi uma
decorrência de mudanças no entorno social dos alunos.
Uma parte do
noticiário conservador interpretou esse
dado de forma desairosa, como se fora um atestado de fracasso do MEC.
Outra, omitiu-o.
Compreende-se.
Investigá-lo
talvez levasse à conclusão de que as políticas demonizadas pela mídia – como o
Bolsa Família, a valorização do salário mínimo, crédito barato, subsídio à
habitação popular etc-- ajudaram o
estudante brasileiro a ter maior poder de aprendizado.
Um
exemplo: estudantes do ensino médio
beneficiados pelo Bolsa Família nas regiões Norte e Nordeste têm rendimento
melhor do que a média nacional (82,3% e
82,7%, contra taxa brasileira de 75,2%).
Outro: pesquisa feita na Universidade de Sussex, na
Inglaterra, em 2012, revela que quanto maior é o tempo de participação das famílias no Bolsa Família,
maior é o aproveitamento escolar das crianças.
Segundo a pesquisa, a taxa de aprovação dos alunos do 5º ano aumenta 0,6
ponto percentual para cada R$ 1 de aumento no valor médio do benefício per
capita pago às famílias.
A influência
da entorno social na escolarização não é privilégio de sociedade pobre.
Tome-se o
caso dos EUA.
O país retrocedeu cerca de 20 pontos na classificação global do Pisa- 2012.
Em 2009 ocupava a 17ª posição; caiu agora para a 36ª,
abaixo da média geral em ciências e matemática.
O que mudou
nos EUA entre 2009 e 2012?
A sociedade
norte-americana mergulhou na sua maior crise desde a Depressão de 1929.
Uma em cada
cinco crianças norte-americanas vive atualmente em ambiente de pobreza. A
renda média das famílias com filhos recuou cerca de US$ 6.300
(tomando-se 2001 como base de comparação). Com a implosão da bolha imobiliária,
um milhão de estudantes de escolas públicas viram suas famílias serem
despejadas . As taxas de desemprego
aberto e oculto hoje superam a faixa dos 13%. O grau de recuperação do mercado
de trabalho na presente crise é o mais lento de todas as recessões anteriores.
A
sobrevalorização do papel da escola na agenda conservadora brasileira padece de
outros flancos de coerência.
Há uma
distancia robusta entre o que se fala e o que se pratica quando se mede o hiato
em moeda sonante.
O piso
salarial do magistério brasileiro hoje, R$ 1560,00, é um dos mais baixos do mundo. A perspectiva
de corrigi-lo para modestos R$ 1.860 reais
em 2014 dispara as sirenes de
alerta do jornalismo que promete mostrar o abismo fiscal na próxima edição.
Segundo o
Pisa, o Brasil investe três vezes menos
que a média da OCDE para educar uma criança dos 6 aos 15 anos (R$ 64 mil
e R$ 200 mil, respectivamente).
Em termos de
PIB, fica com uma fatia equivalente a 5%.
O pedaço
destinado aos rentistas da dívida pública é maior: 5,7% do PIB.
O mesmo
jogral que atribui à educação poderes sobrenaturais, martela a necessidade de submeter a economia
a uma ação purgativa contundente feita de juros mais altos e cortes no poder de
compra da população (em especial, a depreciação real do salário mínimo).
O conjunto
visa, no fundo, preservar a regressividade fiscal brasileira, que
privilegia ricos e penaliza pobres e remediados, contra eventuais reformas
progressistas.
Nos salões
elegantes, os candidatos a candidato do dinheiro grosso em 2014 acenam com a miragem desse país impossível:
um Brasil com produtividade chinesa, civilidade suíça, superávit ‘cheio’ e
carga fiscal equiparável a de Burkina Faso, onde o índice de alfabetização não
ameaça a barreira dos 25%.
Não é apenas
o entorno social do aluno pobre que está ameaçado por esse coquetel ; na
verdade, ele rasga a própria fantasia da
prioridade educacional, reduzindo-a a
sua verdadeira essência histórica: uma agenda protelatória.
Ou seja, um
deslocamento espacial e temporal do conflito distributivo, confinado em uma
escola e em um aluno, aos quais caberá a exclusiva responsabilidade de erguer a
sociedade pelos próprios cabelos.
Ou não será
assim também com a saúde pública, desafiada a ‘fazer mais com menos’, --com
menos ainda depois que a coalizão demotucana subtraiu R$ 40 bilhões por ano do SUS em
2007?
Um
comparativo da OMS mostra o quanto há de perversidade na fotografia que
imortalizou esse ato cometido na madrugada de 13 de dezembro de 2007. A imagem
mostra a nata do retrocesso político comemorando a extinção da CPMF em alegria
obscena. A indecência se panfletada nas
filas do SUS ainda guarda nitroglicerina
para sublevar o país.
Segundo a
OMS, o gasto público mundial per capita com a saúde chegou a US$ 571 por ano em 2010. Inclua-se
nessa média os US$ 6 mil per capita da Noruega e os US$ 4 per capita do Congo;
o valor brasileiro é de US$ 466/ano; em 2000, no governo FHC, somava US$ 107
per capita.
Os mesmos
que gargalhavam na madrugada de 13 de dezembro de 2007 fuzilariam o ‘Mais
Médicos’ seis anos depois. E não por acaso são as mesmas bocas de onde ecoa a
cínica profissão de fé em uma escola
capaz de corrigir aquilo que suas madrugadas políticas cuidam de
perpetuar.
Os resultados do Pisa deveriam servir de
combustível para um aggiornamento do debate brasileiro que de forma preguiçosa adotou o cacoete de
terceirizar à educação tarefas que só uma repactuação do desenvolvimento pode
honrar.
Na ante-sala
do debate eleitoral de 2014 seria
oportuno, por vezes, inverter os termos
da equação. E arguir o que o projeto mercadista pretende fazer em benefício da
pobreza e da desigualdade hoje para que elas possam mudar a escola pública amanhã.
Vale
retornar às origens e reler um trecho inspirador de uma entrevista concedida
pelo professor, crítico literário e cientista social Antonio Candido de Mello e
Souza, à campanha de Lula, em 2002, sobre o assunto.
Como ele, as
palavras aqui emitem uma luminosidade clássica:
"Temos uma crise de civilização
(...) Talvez seja um mal que deriva de um bem.
O esforço para tornar os níveis de
ensino acessíveis a todos força diminuir o nível. Então, você fica num dilema
perverso: elitizo ou democratizo e abdico de qualidade? A saída está numa sociedade igualitária, onde
todos tenham acesso à cultura e à educação de qualidade. Foi o que eu vi em
Cuba. Instrução pública e gratuita em todos os níveis. E de muito boa
qualidade. A chave é a transformação da sociedade, na qual as pessoas se
apresentam para a educação em pé de igualdade.
Quem acha que um bom sistema
educacional salva a pátria está redondamente enganado. A participação nesse
sistema será sempre restrita. Por isso você tem que, primeiro, fazer mudanças
estruturais; depois, terá um boa educação. Os liberais pensam: eu tendo uma
população instruída, terei uma sociedade melhor.
Errado. Tendo a sociedade melhor,
terei uma população instruída. Só assim você supera essa contradição aparente
entre elitização e democratização. Continuo achando que a forma republicana do
ensino público e gratuito é o grande modelo
(...)
Numa sociedade em que as diferenças de classes ficam muito reduzidas,
haverá um desaparecimento da cultura erudita e da popular. E surgirá uma nova
cultura. Isso é possível. A função do Estado é fazer um grande esforço
econômico e social para que no plano cultural o hiato diminua. De tal maneira
que, no fim de certo tempo, o popular se torna erudito e o erudito se torna
popular.
(...) Sempre tivemos uma República de
elite. Um presidente da República era eleito com 200 mil votos - e votos
descobertos. Em 1930, eu assisti na minha cidade, em Cássia, Minas Gerais, à
última eleição a descoberto. O eleitor chegava e o coronel, ao lado,
fiscalizando. Depois de Getúlio, com a emergência das massas operárias, das
massas urbanas, não foi mais possível manter esse estreitamento. O Getúlio era
um caudilho esperto. Para manter as elites sob controle, abriu as porteiras e
deixou o povo entrar, mas patrocinado por ele. Todavia, abriu a porteira. E ela está aberta até hoje” (Antonio Candido;
site da Campanha Lula Presidente; 2002)
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